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A bruxa, o deserto vermelho, a pedra que canta, o presépio e outros prodígios em Santa Maria

Pedra de cantaria, Poço da Pedreira, Santa Maria, Açores - Foto de Paulo Pimenta

Colombo pode ter a estátua, bem no centro do lugar dos Anjos (que assinala a sua passagem pela ilha, em 1493, no regresso da sua descoberta da América), em frente à primeira igreja dos Açores, a Ermida de Nossa Senhora dos Anjos, mas é a bruxa dos Anjos que nos faz ver o céu.

Entre a Praia de Lobos e o lugar de Anjos, noroeste mariense, lugares fundacionais de Santa Maria – e daqui haveria Açores – as rochas oferecem-se a caprichos da imaginação. Aqui, já faz parte do folclore local, o desenho do nariz e do queixo da “bruxa” e, uma vez detectado o rosto, de perfil, é impossível ver outra coisa que não “a” bruxa. Nelson Moura, vigilante da natureza e nosso guia, até inventou uma história para a cache que aí deixou (é praticante de geocaching), que envolve sereias (uma bela e as irmãs feias) e os descobridores.

A natureza em Santa Maria revela-se como enciclopédia geológica natural, e no “deserto vermelho dos Açores” – nome oficial, Barreiro da Faneca – encontramos um exemplo de 835 hectares da última fase eruptiva da ilha, que se revela no solo argiloso de cor vermelha (é fácil imaginar África), que se exibe com algumas dunas, resultantes da erosão – há não muitos meses, um casal de turistas aventurou-se com um jipe pelo barreiro depois de fortes chuvadas e ficou com o carro atolado. Hoje, o solo está consistente q.b. e podemos concentrar-nos no cantar do esquivo “Estrelinha de Santa Maria”, “pássaro do tamanho de uma chave, mais leve do que um pacote de açúcar e endémico na ilha”.

Foz da Ribeira Grande - Foto de Paulo Pimenta

Endémica desde Fevereiro está uma flor amarela, que aparece nos muros (de basalto, claro), que marcam o caminho às estradas das ilhas. “Ainda não tem nome comum”, explica Nelson, “têm alguma ideia?” A pergunta é de retórica, sabemo-lo , mas ainda assim reflectimos, olhos perdidos, na tapeçaria amarela. “Não”, respondemos, porque o que nos vem à cabeça é estrela – e o lugar de estrela, já vimos, está ocupado pela ave de som agudo.

Se achamos que já vimos muitos prodígios, a paragem seguinte revela-nos um oásis vermelho de pedras que cantam. Estamos perto de São Lourenço, no cimo da encumeada – a estrada para aquela que é uma das duas únicas praias de areia da ilha está fechada para obras e iremos senti-lo na pele, quando um pneu rebentar. Mas antes disso, paragem para mais um dos geossítios de Santa Maria, o único que não é área protegida, o Poço da Pedreira.

Uma curta caminhada, com curva radical, revela-nos uma parede vermelha, que parece ter sido esculpida com régua e esquadro – se estivesse sol, a pedra refulgiria, mas ainda assim o vermelho-ferro não esconde a sua graça. Quase: foi escavada à custa de objectos de ferro: “Malhas, cunhas e a pedra cantava”, daí o seu nome “pedra de cantaria”. “Nos Açores só existe aqui e como aguenta muito calor é usada em lareiras e como pedra ornamental, em fachadas de igrejas e casas”, explica Nelson.

E se falamos em oásis é pela envolvência da falésia vermelha, com um lago aos pés, árvores numa plataforma da parede, “relvado” aparado, mesas de piquenique e depois a paisagem, montanhosa para além do vale que se abre ao lado, na ribeira do Salto. Aqui os sons não são de pássaros, são as rãs e sapos que compõem a sinfonia natural. E aqui temos mais uma oportunidade para nos maravilharmos com o poder regenerador da natureza, quando Nelson nos explica a vegetação, endémica, que vemos, a urze e o pau-branco (nos muros mais acima, brilham os líquenes de vários feitios).

Barreiro da Faneca - Foto de Paulo Pimenta

Em território vulcânico, os líquenes são os primeiros a aparecer, necessitam apenas do vento norte para se desenvolverem; quando morrem deixam matéria orgânica que ajuda ao aparecimento da urze que, por sua vez, como os pinheiros, deixa cair caruma e sobrevive bem em solos ácidos; e assim deixa o terreno preparado para o aparecimento do pau-branco e, no final do ciclo, ao cedro do mato – tudo isto até que um distúrbio interrompa o ciclo e o faça recomeçar. Foi o que aconteceu aqui, onde, depois de o homem disturbar o equilíbrio, tudo se está a renascer seguindo os mesmos passos.

Nem só de maravilhas naturais se faz Santa Maria e a freguesia-presépio de Santa Bárbara é disso exemplo. As casas aqui, quase todas a obedecerem à arquitectura típica mariense, “rodeadas do seu quintalinho e mato”, dispersam-se no cenário que é de encostas, porque estamos já na zona leste, montanhosa, portanto, sem qualquer ordem aparente.

Há uma justificação que não é óbvia e, mais uma vez, é Nelson que desvenda a assimetria de construção que confere a aparência tão particular a Santa Bárbara. E, mais uma vez, é a natureza que condiciona tudo, “sem necessidade de arquitecto paisagístico”. Como havia poucos recursos hídricos, na parte mais alta fica a floresta que intercepta os nevoeiros, recolhendo a água; abaixo vêm as pastagens e a seguir as casas, normalmente em cima de rochas – para deixar a terra mais fértil, depois de todos os nutrientes que chegam de cima, para os cultivos.

E se procuramos o lugar mais propício a fotos e entrarmos em terreno alheio pode acontecer encontrarmos como decoração exterior uma série de objectos agrícolas de antanho e recebermos convite para conhecer os verdadeiros “tesouros”, imaculados, no interior da residência – desde que não mencionemos os nomes envolvidos. É a hospitalidade dos marienses, dizem-nos, ávidos de conhecer novas gentes, circunscritos que estão a uma população de seis mil pessoas.

Havemos de ver um macaco, cascatas, uma “calçada dos gigantes”, currais de vinhas e o fundo do mar a mais de cem metros de altitude. É Santa Maria a ilha dos prodígios?

in publico.pt/emviagem

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