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Anthony Bourdain: "Comecei a cozinhar rodeado de comida açoriana deliciosa"

Mal o novo livro de receitas de Anthony Bourdain, Apetites, saiu nos Estados Unidos - a versão portuguesa já está à venda desde quarta-feira, 19 de Abril - iniciaram-se os esforços para falar com o homem que, depois de décadas a liderar cozinhas norte-americanas (como a do famoso bistrô Les Halles ou a do Rainbow Room, ambas em Nova Iorque) se transformou no escritor/repórter de viagens e gastronomia mais conhecido do mundo.

O tema predominante na conversa virtual (realizada por email) foi óbvio: o novo livro. Depois de quase 10 anos sem publicar uma obra de não-ficção, este Apetites marca o regresso ao activo de Bourdain. Ao Ponto: Uma Carta de Amor Sangrenta ao Mundo da Culinária foi o último a ser posto à venda em Portugal, em 2011, e Get Giro: Blood and Sushi, uma novela gráfica escrita pelo ex-chef, chegou às bancas em 2015.

Esta novidade é um livro de receitas clássico, que mostra uma diferente faceta deste bad boy dos tachos. Aos 60 anos, Bourdain "já não é a estrela do filme". Hoje o destaque vai para Ariane, a sua filha de 8 anos. Foi com ela em mente que partiu para este livro, um apanhado de experiências e memórias sob a forma de pratos simples e cheios de carisma - espelho do homem que agora as apresenta.

De que forma é que ser pai [em 2007] de Ariane mudou a sua vida?
Deixei de ser a estrela do filme. Agora é tudo para ela e a pensar nela.

O que o fez escrever este Apetites?
Talvez um desejo perverso de subverter algumas assumpções que as pessoas têm sobre mim. Já me cansei da imagem de bad boy (que na verdade desapareceu completamente, depois do Kitchen Confidential). Ao mesmo tempo, achei que era uma boa maneira de reflectir sobre as mudanças na minha vida, sendo a paternidade uma das maiores e mais significantes.




A comida funciona como um agregador de memórias, emoções e experiências. O Apetites é um livro de memórias comestíveis suas, que um dia passará à sua filha?
Não tenho qualquer dúvida que tive isso em consideração quando escrevi o livro. As receitas que escolhi são todas muito pessoais e gostava muito que a minha filha as conhecesse ou que, pelo menos, as valorizasse como eu valorizo. Por outro lado, acho que também consegui juntar uma série de técnicas que ela (e toda a gente, na verdade), deve saber, para que se possa ser um bom e útil cidadão do mundo.

A Ariane gosta de cozinhar consigo. Se ela quisesse ser chef, ficaria orgulhoso?

Num primeiro momento ficaria horrorizado - como é que ela aspiraria a fazer uma coisa tão difícil, tão pouco provável de lhe trazer sucesso e felicidade, algo que a fosse marginalizar da sociedade bem-educada? Depois acho que ficaria muito orgulhoso, precisamente por causa de todas essas coisas.

As crianças costumam ser picuinhas. Foi difícil convencer a sua filha a experimentar fígado ou tripas?
A minha filha cresceu com uma mãe italiana, avós italianos, um pai chef e um melhor amigo filipino, por isso tem comido de forma aventureira desde o início. Ela gosta de balut (!) [ovos de pato semifecundados que são cozidos, uma iguaria asiática], come ostras cruas desde os 3 anos e é completamente imprevisível e destemida no que toca a provar coisas. Nunca tive de encorajá-la a experimentar coisas novas - e nunca o faria. Sempre quis que ela se sentisse confortável para encontrar os seus próprios gostos e caminhos.

No livro escreve que passou a gostar de fazer o pequeno-almoço por causa da sua filha. De que outro modo a paternidade alterou a sua maneira de cozinhar?
Tento comprar ingredientes saudáveis. Não sei se a comida biológica fará melhor, mas como pai, tento, pelo menos, mantê-la em segurança.




O Apetites inclui várias receitas portuguesas ou de inspiração portuguesa. Há algum prato português que goste muito?
Comecei a cozinhar em New England [região na Costa Este dos EUA], rodeado de comida açoriana deliciosa. À conta disso passei a adorar guisados escuros completamente infectados com cominhos, chouriço, estufado de lulas, caldo-verde, tripas à moda do Porto…

Também diz que se tornou uma avózinha italiana, sempre a mandar as pessoas comer. O que há de tão fascinante no imaginário italo-americano?
Cresci numa família que via a comida e o acto de comer à mesa como algo muito formal. Nós éramos desencorajados a reagir à comida de forma efusiva, vocal e com gestos de mãos. Sempre admirei a paixão e as discussões sobre comida nas estereotipadas mesas italo-americanas que aparecem no cinema. Hoje em dia adoro tudo o que seja italiano e a forma como eles entendem a comida de qualidade como um direito adquirido à nascença.

Arrepende-se de nunca ter passado por um restaurante Michelin de topo na Europa?
Costumava sentir-me arrependido. Talvez ainda sinta. De qualquer forma, tudo correu muito bem.

No último capítulo de No Ponto escreveu: "Há canções que nunca mais conseguirei ouvir. Algumas que associo aos tempos […] em que tudo era dourado." Há algum prato que não consiga comer por causa das memórias?
Não, eu abraço-os a todos. Não consigo resistir.

Quando tem de escolher um novo destino para o programa, o que é que pesa mais: a história ou a comida?
A comida ajuda e procuramos por ela primeiro, na maior parte das vezes. Hoje em dia, porém, já não é um factor essencial do programa. O episódio que gravámos no Congo, por exemplo, foi quase todo à volta da história do país. Assim como o da Líbia. Tivemos algumas reservas em falar sobre comida no Congo, país onde a fome é um problema bastante presente e as pessoas lutam para conseguir sobreviver. Concentrarmos-nos na parte gastronómica teria sido obsceno. Tomamos decisões deste género caso a caso. Olho para o mundo sempre do ponto de vista de um ex-cozinheiro, mas a CNN permitiu-me vaguear para fora da mesa sempre que me apetece. Gosto muito que as coisas sejam assim, até porque tenho mais interesses além da comida.


Antes da sua recente visita ao Porto, filmou em Lisboa. Muita gente, na altura, ficou com a ideia de que não lhe tinham mostrado o potencial gastronómico da cidade e que não o levaram a muitos restaurantes típicos. Sentiu que havia mais em Lisboa para descobrir?

Sem dúvida. O programa só tem 42 minutos. Nós não tentamos apanhar tudo: é uma visão pessoal que reflecte o tempo que passei em determinado local. Nós nem sequer nos atreveríamos a ser totalmente abrangentes, a fazer tops 10 ou best of - o programa não é sobre isso. Deixamos sempre de parte vários aspectos importantes da cultura do sítio por onde passamos.


Lisboa e Porto têm recebido mais turistas do que alguma vez receberam. Fala-se de gentrificação. Vê isto acontecer noutras partes do mundo por onde tenham passado? Discutem o vosso papel neste fenómeno?
No programa que acabámos de gravar no Porto falámos precisamente sobre isso. Isto é uma coisa que acontece em todo o lado e o nosso efeito (que é positivo e negativo ao mesmo tempo) é algo que temos em consideração e que debatemos muito. Existe um aspecto destrutivo em fazer televisão, ela muda muita coisa.

Qual foi o critério que utilizou para decidir as receitas que entravam, ou não, no livro?
Exclui aquelas que achei serem demasiado complicadas. Houve uma receita espectacular inspirada pelo Éric Ripert que não pude usar porque a Ruth Reichl já a tinha utilizado num livro dela. Isso doeu um bocado.

Quando seguimos uma receita, mais cedo ou mais tarde, acabamos por lhe acrescentar ou tirar alguma coisa. Que opinião tem das pessoas que modificam receitas suas?
Modifiquem o que quiserem! Só não o façam com receitas clássicas como uma boa carbonara ou um bife bourguignon. Acho que temos de aprender a fazer bem os clássicos antes de os começarmos a lixar. Depois de os dominarem? Modifiquem o que quiserem!

Os restaurantes de fine dining aborrecem-no. Disse recentemente que os chefs "deviam estar no negócio do prazer, não no negócio do olha-para-mim". Acha que a alta cozinha tem dificuldade em criar comida emocional?
Os verdadeiros grandes chefs de alta gastronomia são grandes precisamente porque conseguem fazer comida assim. Eles conseguem conjugar o melhor da criatividade e da técnica, mas também a importância das emoções e da memória, utilizando tudo isso para criar um efeito poderoso nos clientes. O Ferran Adrià era muito bom a fazer isto.

Hoje em dia os chefs têm uma exposição mediática e social sem precedentes. O que acha disso?
Acho positivo desde que esta seja atribuída de forma equilibrada. Isto mudou o equilíbrio de poderes e fez com que os chefs passassem a ter espaço para exprimirem as suas opiniões sobre aquilo que melhor fazem - e isso faz com que eles, de facto, nos consigam dar o seu melhor. É muito bom para os clientes, também, porque as pessoas passaram a conhecer melhor o mundo da cozinha e da gastronomia, têm expectativas mais altas, são mais exigentes. Os chefs costumavam ser criados, agora passaram a ser vistos como artesãos - e eu acho que isso é muito bom.

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