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O casal que levou o futebol ao Corvo - Reportagem


O casal que levou o futebol ao canto mais distante de Portugal
CAMINHOS DE PORTUGAL  é uma rubrica do jornal Maisfutebol que visita passado e presente de determinado clube dos escalões não profissionais. Tantas vezes na sombra, este futebol em estado puro merecerá cada vez mais a nossa atenção. Percorra connosco estes  CAMINHOS DE PORTUGAL .

Esta viagem começa de avião e obriga a fazer pelo menos uma escala: afinal é a única maneira de chegar ao Corvo. Termina de avioneta ou barco, tanto faz.

Mas é longa. São quase dois mil quilómetros desde o continente.

Maisfutebol prefere tornar a distância próxima através do telefone. Assim que se chega ao Corvo, percebe-se que este é um lugar especial, cheio de gente especial.

O primeiro telefonema é para um café local, para tentar descobrir se há algum clube de futebol federado e se há algum responsável com quem se possa falar.

As respostas são sim e sim.

«O melhor é falar com o Daniel, ele é que trata de tudo no clube», dizem-nos. «Tem algum telemóvel?», pergunta-se. «Sim, aponte aí...»

As portas abrem-se sem esforço. Há maior encanto do que gente de coração aberto?

Daniel Lima explica-nos que só há um clube na ilha: chama-se Clube Desportivo Escolar do Corvo. Foi fundado em 2012, mas esteve inativo até maio deste ano. Nessa altura é que ele e a namorada decidiram dar um novo impulso ao clube, e à ilha.

«O Corvo era o único território de Portugal em que não havia competição federada. A partir do momento em que criámos o clube a competição passou a ser extensível a todo o país, incluindo ilhas. Aconteceu muito por vontade das pessoas.»

Nesta altura convém dar uma curva na história do clube para falar da história das pessoas.



Ele chama-se Daniel, já se viu, e é de Barcelos. Ela chama-se Tânia e é de Moura, no Alentejo. Ele é professor de educação física, ela é bióloga. O destino levou-os aos dois para o Corvo. Conheceram-se numa ilha em que era impossível isso não acontecer e apaixonaram-se: começaram a namorar. Juntos tornaram-se mais fortes.

«Comecei a jogar futsal com cinco anos», conta Tânia Pipa. «Quando cheguei ao Corvo, em 2011, havia poucas atividades desportivas... O clube foi fundado em 2012 por David Valente e entretanto conseguimos entrar na estrutura federativa.»

Esse foi aliás o passo decisivo.

Os dois, Daniel e Tânia, apresentaram uma proposta para introduzir a competição no clube à Câmara Municipal do Corvo (a mais pequena do país e a única sem freguesias). A seguir fizeram o mesmo com a Associação de Futebol da Horta.

Ela tornou-se presidente, ele uma espécie de técnico pago pela Câmara que faz tudo.

«A Associação de Futebol da Horta ofereceu-nos algumas inscrições e algum material: bolas, equipamentos, etc. A Câmara Municipal empresta-me a mim para treinar os miúdos, empresta material, instalações, enfim, tudo o que é preciso.»

E assim o Corvo, o lugar mais isolado do país, ganhou o direito de competir.



A ilha mais distante de Portugal, com apenas 398 habitantes e uma só localidade, inscreveu-se em duas modalidades: futsal e voleibol.

«Temos futsal séniores, iniciados, infantis e benjamins, tudo apenas masculino, e temos voleibol em minis mistos e séniores femininos, mas não federados», conta Daniel.

«Temos cerca de 60 atletas, entre futsal e voleibol, o que é um feito numa ilha com 400 pessoas. Em alguns escalões temos equipas mistas, porque não conseguimos ter dez miúdos da mesma idade, e nos seniores temos jogadores federados dos 18 aos 42 anos», acrescenta Tânia.

Para esta reportagem interessa sobretudo a equipa de futsal sénior.

Ora é uma equipa curiosa: antes de mais, porque não é bem uma equipa. São três. O mesmo clube, três equipas: a A, a B e a C.

«Vamos jogando entre nós. A Associação de Futebol da Horta envia para cá a hora do jogo, a jornada e o código. A partir daí duas equipas jogam entre elas e outra folga.»

Daniel faz ele próprio parte de uma equipa, joga na A.

«Sou treinador dos miúdos e jogo numa equipa de seniores. As equipas foram feitas mais ou menos por afinidade, os que estão nos trintas juntaram-se numa equipa, a malta entre 25 e 29 juntou-se noutra, enfim...», conta.

«Somos todos gente aqui da ilha e treinámos três vezes por semana. Nem toda a gente tem oportunidade de ir àquela hora, portanto, há sempre gente que falta.»

«Não temos treinador, não há aqui ninguém com o curso, por isso marcamos uma hora, aparecem dez ou doze pessoas, fazemos uns exercícios físicos e jogámos uma hora.»

Ao domingo acontece magia: jogos de futebol na sua variante de futsal.



«Está a ser excelente, temos sempre entre 40 a 60 pessoas a assistir às jornadas, ao domingo à tarde, e torna-se um verdadeiro domingo desportivo», conta Tânia.

«É uma festa.»

Só há três equipas e só jogam duas, é verdade, mas a competição é longa. Há torneio abertura e encerramento, há taça de honra, enfim. No fim tem de haver um campeão.

«Há vários torneios em cada ilha e no fim cada uma deve encontrar um campeão. Depois o campeão do Corvo, joga com o das Flores, o do Pico e o do Faial e encontra-se o campeão do grupo ocidental», explica Daniel.

«Depois num fim de semana apura-se o campeão dos Açores, num torneio triangular entre o campeão do grupo ocidental, o campeão da Terceira e da Graciosa,  e o campeão de São Miguel e Santa Maria.»

Para já as três equipas do Clube Desportivo Escolar do Corvo jogam apenas entre si, mas chegará o dia em que uma delas sai da ilha...

«Precisamos de ver como serão as viagens, porque até julho só há voos às segundas, quartas e sextas, o horário dos jogos pode fazer com que tenhamos de ir dois dias mais cedo», explica Tânia.

Mas essa está longe de ser a única preocupação do casal nesta aventura pela competição.

«Não é fácil porque o Polidesportivo é semi-coberto, ou seja, tem telhado mas é aberto dos lados. Numa ilha com muita chuva e vento, temos de vir às 10.30 ou 11 horas, eu e o Daniel, para tirar a água do piso, que é de cimento, e esperar que seque até depois do almoço. Os jogos começam às 14 horas», acrescenta Tânia.



«O ginásio da escola, por outro lado, não tem as medidas necessárias. Esperamos em 2015 ter o Polidesportivo coberto e com um piso adequado, era muito importante.»

Daniel acrescenta que essa obra está prometida: fechar o único ringue da ilha, para se tornar num pavilhão com um piso mais simpático à pratica desportiva do que o cimento.

«O clube não tem nada dele, nem sequer uma sede. Para a sede utilizámos uma sala da escola, a morada também é da escola, o correio vai para lá...», adianta Daniel.

E árbitros? Como os arranjam?, pergunta-se.

«Os árbitros são pessoas que estão no Corvo, seis ou sete, eu incluída, que tiveram formação, dada por elementos da Associação de Futebol da Horta quando vieram cá.»



No fundo o Corvo era uma ilha onde faltava tudo, até maio de 2014, menos a boa vontade.

«Aqui é fácil mobilizar as pessoas, porque toda a gente se conhece, são primos, amigos, enfim. A palavra passa naturalmente», conta Daniel.

«Este é um meio muito pequeno mas os jovens estão sempre ocupados, até se torna dificil conciliar horários. Há a ideia errada de que no Corvo não há nada para fazer. Isso é só para quem não quer», acrescenta Tânia.

Ele e ela apaixonaram-se um pelo outro, e os dois pelo Corvo. Tanto assim que Daniel, quando não conseguiu escola e ficou desempregado, voltou para o Corvo.

«Passa-se a imagem que o Corvo se vê em duas ou três horas, vai-se ao Caldeirão, que é uma beleza da natureza, e pronto, está visto. É verdade que só há uma estrada principal, que só há um vila, que há pouca gente, mas há vida no Corvo, um forte sentido de comunidade, e cada vez mais atividades», revela Tânia.

«Por outro lado, temos o lado bom do isolamento, a natureza preservada, uma praia onde nunca estão mais de 20 pessoas, fantástica. O inverno não é fácil, é certo, mas compensa. Se não, não estaria aqui desde 2011.»

Daniel soma que tem qualidade de vida.

«Temos tv cabo, internet por fibra ótica há muito tempo, temos painéis solares para aquecimento da água. As empresas investem aqui, por ser um meio pequeno, como projeto piloto, para ver se funciona. Por isso temos as tecnologias antes do resto do país.»

Se calhar foi por isso, por o Corvo ser uma comunidade tão especial, tão isolada, tão pequena, que a Coca-Cola fez um anúncio antes do Mundial 2014 na ilha.

Daniel também aparece no filme.

«Mas não ficou nada, nem deixaram nada para ajudar o futebol da ilha. Vieram, fizeram o anúncio na ilha e com pessoas da ilha, e foram embora.»

Vale nesse sentido o espírito dos locais.

Gente de coração aberto e que não é menos do que ninguém: só está mais longe. 

Fonte: Maisfutebol

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