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Rabo de Peixe: um clube que tira do mar o seu sustento

Na vila piscatória açoriana o futebol é feito com gente do mar: os pescadores doam parte do lucro da faina para ajudar nas despesas e alguns fazem parte do plantel

Rabo de Peixe não faz parte do roteiro turístico da ilha de São Miguel. Não há postais ilustrados sobre uma freguesia pobre e com problemas sociais de sobra.

A riqueza desta vila piscatória é a gente e o mar. É desta combinação que surge a força do Grupo Desportivo Rabo de Peixe, clube fundado em 1985 e que atualmente compete na Liga Meo Açores, que dá acesso ao Campeonato de Portugal.

A ligação está bem patente na camisola da equipa açoriana, em que o patrocínio não é de uma grande empresa ou sequer de qualquer pequeno estabelecimento, mas dos «Pescadores de Rabo de Peixe», que doam uma pequena parte da receita da faina para ajudar o clube.

António José Pacheco, bancário na reforma, que há cinco anos exerce as funções de diretor-desportivo do clube, explica a ligação.

«Um por cento da receita da pesca é doada para ajudar o clube. Desempenhamos o papel importante de tirar os miúdos da rua. Temos duas equipas no escalão sénior, todos escalões de formação e recentemente criámos uma equipa de futsal: mais de 300 atletas. A ligação é pesca é natural, até porque boa parte dos jogadores do plantel principal trabalham no alto-mar», explica ao Maisfutebol o dirigente, salientando as dificuldades de alguns atletas em conciliarem uma atividade profissional arriscada e muito exigente com a dedicação ao futebol:

Os jogadores treinam à noite, saem do estádio por volta das 22h30 e alguns deles vão dormir duas ou três horas a casa para em seguida saírem para a pesca, já de madrugada. Passam longas horas no mar. Isto todos os dias da semana, desde que o tempo permita e o mar esteja bom. Não é uma vida fácil, mas chega o dia do jogo e eles dão o litro, às vezes até mais do que jogadores que têm profissões mais leves.Escalões jovens do clube açoriano

António José Pacheco fala de futebolistas-pescadores como Valter Moniz. Aliás, Valtinha, avançado de 27 anos nado e criado em Rabo de Peixe, que depois de ter jogado nos escalões de formação de Boavista e Palmelense, regressou aos Açores, onde fez a sua carreira como sénior noutros clubes micaelenses – União Micaelense, Operário, Santiago e Sp. Ideal – antes de regressar ao seu clube do coração.

Valtinha conta ao Maisfutebol uma rotina dura, entre o campo de futebol e o mar. «Mal tenho tempo para descansar e para estar com a minha mulher e os meus dois filhos. Por exemplo, hoje [ontem], vou treinar, chego a casa, mudo de roupa e vou para o mar. Nem durmo. Vamos pescar lula, albacora, chicharro… Como diz o ditado, ‘o que vem à rede é peixe’. Dividimos com o mestre o lucro, mas se não pescarmos nada, não há nada para receber. Fazemos viagens de quatro ou cinco horas, ao largo da costa norte e da costa sul de São Miguel e por vezes até perto da ilha de Santa Maria. Chegamos de dia e há dias em que nem fazemos uma refeição como deve ser porque temos treino pouco tempo depois. Mas gosto de jogar futebol e de ser pescador.»

O ponta-de-lança que por vezes até faz de extremo fala da equipa como quem fala da família. Aliás, a equipa é também uma família. Ele tem dois irmãos, José e Mário, também pescadores, a jogar no plantel do Rabo de Peixe. Tal como João e Luís Flor ou José e Paulo Vieira. Também irmãos, futebolistas e pescadores na mesma equipa, onde há ainda cunhados, primos… Quase tudo gente de Rabo de Peixe, uma vila de 9 mil pessoas, que tem quase tanta gente como a cidade da Ribeira Grande, sede de concelho.O emblema bem ilustrativo do Clube Desportivo Rabo de Peixe

Apesar das dificuldades e do contexto, o clube tem uma ambição grande: chegar ao Campeonato de Portugal. Para isso, tem de conquistar o acesso na Liga Meo Açores, onde ocupa o 3.º lugar, à terceira jornada a três pontos da liderança.

Há cerca de três semanas, o Rabo de Peixe fez história: pela primeira vez defrontou uma equipa profissional, recebeu o Gil Vicente na 2.ª eliminatória da Taça de Portugal e perdeu por 0-2 num jogo que teve tanta gente a querer assistir que até teve mudar do modesto Campo de Jogos Bom Jesus para o Estádio Municipal da Ribeira Grande.

António José Pacheco, que trabalhou durante 17 anos no Santa Clara, não enjeita a possibilidade de subir e deixa uma espécie de prognóstico: «Nos últimos anos ficámos de forma consecutiva classificados no quarto lugar, depois em terceiro, no ano passado em segundo… Agora, este ano falta-nos ficar em primeiros e subir aos ‘Nacionais’ tal como outros clubes açorianos já fizeram.»

Valtinha concorda com o diretor-desportivo e até sente a pressão nas ruas e nas bancadas. «Somos dos clubes que mais adeptos tem nos Açores, talvez mais até mais do que o Santa Clara… Somos a terra dos pescadores e esta gente aqui vibra com a equipa, tem orgulho em nós, e também nos exige muito. Por isso, temos a expetativa de lhes retribuir e conseguir algo histórico este ano.»

Subir ao Campeonato de Portugal é difícil, claro que sim. Mas não é feita de facilidades na vida de quem joga futebol e anda no alto-mar, dia após dia, como quem corre por gosto.

Fonte: maisfutebol.iol.pt

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