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Quinta dos Açores, das vacas que pastam nas ilhas aos gelados que se comem em Lisboa



Quando se produz leite e se sabe que o preço deste está em queda, a solução é encontrar um produto de valor acrescentado. Foi o que fez a família Barcelos, da Quinta dos Açores: pegou no leite das vacas açorianas e fez gelados, que agora chegam a Lisboa cheios de sabores do arquipélago.

As três irmãs ainda guardam a fotografia histórica: o cais do Porto Pipas, em Angra do Heroísmo, cheio de homens que esperavam a chegada das vacas, e estas, pretas e brancas, a desembarcar do barco-estábulo e a desfilar perante o olhar aprovador dos lavradores. A história da Quinta dos Açores – os gelados que acabam de chegar agora a Lisboa, com um espaço próprio, na Rua de São Paulo – podia começar antes ou depois deste momento. Mas o simbolismo da chegada de 990 novilhas gestantes, da raça Holstein Frísia, à ilha Terceira é tão grande que vamos começar aí mesmo.

Francisco Helvídio Barcelos, o pai das três irmãs, Telma, Helga e Diana, foi o grande responsável por aquela agitação no cais naquele dia. Foi ele quem decidiu ir até à Alemanha comprar vacas leiteiras de uma raça que até então não existia na ilha, onde a maioria dos animais eram da raça Catrina, mais robusta e boa para o trabalho mas não tanto para a produção de leite.

A ida à Alemanha já tinha sido uma aventura. Mas, para a entender, vamos recuar a 1977, ano em que, para surpresa de muitos, Francisco, até então um funcionário público, se tornou agricultor. Helga, a filha do meio e hoje directora da Quinta dos Açores e responsável pela produção de gelados, conta, entre gargalhadas: “O meu pai conheceu a minha mãe, que era filha de um lavrador, namoraram, casaram, o meu avô ficou doente e disse ao meu pai que precisava de vender a lavoura, que era muito pobre, umas 25 vacas, um boi de trabalho, uma carroça. O meu pai foi trabalhar e começou a fazer contas e antes do final do dia, sem falar com a minha mãe, disse ao meu avô que ia ficar com a exploração dele.”

Francisco tinha 21 anos e casara com Maria José, que estava feliz por ter em casa um funcionário público. “A minha mãe, que pensava que ia deixar a vida da lavoura, de um momento para o outro viu-se numa situação muito pior: em vez de ser filha de um lavrador, passou a ser mulher de um lavrador.” Mas nenhum dos dois podia, nesses finais da década de 70, imaginar onde esta aventura os iria levar. Hoje, a Quinta dos Açores tem cinco empresas, produz carne, leite, gelados e iogurtes, tem dois restaurantes/geladarias nas ilhas Terceira e São Miguel e abre agora a primeira geladaria em Lisboa.

Seguimos de carro com Helga e Diana, que, enquanto contam a história da família, nos levam a conhecer o projecto, desde as vacas que andam nas pastagens verdes (no dia da visita da Fugas, o nevoeiro quase não nos permitia ver nem pastagens nem vacas) até ao restaurante, passando pela fábrica onde se produzem os gelados.



Voltemos então à história de Francisco que, tendo decidido comprar a lavoura do sogro, “foi à banca, endividou-se e, como rapaz de 21 anos com pouco juízo como era, começou a ver os outros com tractores e achou que a primeira coisa que tinha que comprar era um tractor”. Tinha-se era esquecido de fazer contas. E ao fim do primeiro mês de trabalho, ao receber o pagamento pelo leite das suas vacas, “percebeu que não dava para pagar a prestação do tractor e que, das duas uma, ou comprava mais vacas para conseguir fazer mais dinheiro, ou tinha que vender o tractor”.

A decisão foi aquela que já sabemos: juntou alguns amigos e compraram bilhetes de avião para a Alemanha. Iam comprar vacas leiteiras mas percebiam pouco do assunto e nem sequer sabiam falar alemão. Mesmo assim, voltaram com as tais 990 novilhas e mudaram a história da ilha Terceira no que diz respeito à criação de vacas. “O meu pai”, prossegue Helga, “foi um dos grandes responsáveis pelo melhoramento genético das raças”. A irmã mais velha, Telma, acabou por se apaixonar por este aspecto da produção, hoje é veterinária e “foi das primeiras pessoas a fazer aqui transferência de embriões”.

Os que brincavam com Francisco dizendo que tinha tido sorte nos negócios mas azar por ter três filhas raparigas, tiveram que engolir essas palavras porque Telma, Helga e Diana estão hoje à frente do grupo, nas diferentes áreas. Talvez não tenha sido por acaso. Quando eram ainda pequenas, o pai deu a cada uma delas uma bezerrinha para que aprendessem a tomar conta. As miúdas apaixonaram-se pelos animais – e, sobretudo, por um deles.

Diana e Helga riem ao recordar a Quieta, que já morreu mas que vive actualmente, de outra forma, como a mascote do grupo, estrela dos livros que editam com pequenas histórias, nas quais as três irmãs são protagonistas (Diana aparece sempre com uma chucha na boca, a lembrar que é a mais nova, e Telma com brincos, que usa habitualmente), e modelo em todas as fotos que crianças e adultos tiram nas visitas à fábrica e ao restaurante, onde a Quieta está logo à entrada.

“Ela nunca parava quieta, saltava, bebia o leite das outras, vinha ter com a gente, tirava-nos a mochila”, contam as irmãs. “Estávamos sempre a dizer-lhe 'pára quieta' e daí ficou com o nome. Foi uma vaca espectacular, muito nossa amiga, foi ela que nos fez apaixonar pelo mundo das vacas e nos fez perceber o quanto são dóceis e inteligentes.”

Com a produção de leite em pleno, a família teve que enfrentar outro problema: a queda do valor deste produto. É então que surgem os gelados. Helga preparou-se sempre para tomar conta da parte dos lacticínios, mas foi durante o curso que percebeu que o trunfo de um produto diferenciado estava nos gelados. “Nunca pensamos em gelados como sendo um produto lácteo, mas isso é um defeito do português, porque é o produto lácteo com maior valor acrescentado. Comecei a fazer pesquisa e fiquei maravilhada. Percebi a importância dos gelados na valorização do leite.”

Fez formação nos Estados Unidos, Irlanda e Espanha, viu que o que podia fazer realmente a diferença na sua produção era ter ali ao lado, fresco da ordenha, o leite de vacas que pastam em campos ao ar livre, testou e confirmou que essa frescura se notava na cremosidade dos gelados.

E assim, uma história que começou numa lavoura com 25 vacas e um jovem agricultor a dar voltas à cabeça para tentar descobrir a melhor forma de não se endividar por causa de um tractor, transformou-se, várias décadas depois, num paraíso dos amantes de gelados – leite, nata, açúcar e tudo o que a nossa imaginação se lembrar de lhes juntar.

Vacas top model

Um dos trabalhos de Telma, a filha mais velha de Francisco Barcelos e a veterinária do grupo, é preparar as vacas para as feiras onde vão participar em autênticos concursos de beleza. “São vacas top model”, resume Diana, a irmã mais nova. “Antes de desfilarem são tosquiadas, pintadas, penteadas. A Telma leva um mês ou dois a prepará-las para a feira, a ensiná-las a desfilar, a parar. São concursos de beleza.” E desde que, como produtores de gado, começaram a somar prémios (na fábrica têm uma sala cheia de troféus), “veio o bichinho de fazer mais e melhor geneticamente”.

Vamos até ao campo para ver as vacas pastar e as irmãs apontam para uma ou outra, indicando as que têm potencial para serem top models e explicando que características são valorizadas nos concursos. “Têm que ter uma costela larga, quanto mais larga maior a probabilidade de ser superleiteira, devem ter o úbere subido, que é melhor por causa da longevidade, se o tiverem caído vai ter tendência a ficar sujo e a ganhar mamites, e têm que ter o ligamento traseiro bastante subido para sustentar o úbere quando ele tiver leite.”

Francisco Barcelos foi, sublinham as filhas, um dos grandes pioneiros não só na prática de inseminação artificial das vacas como no melhoramento genético que estas tiveram nas últimas décadas. O trabalho tem sido feito não só com as vacas leiteiras, mas também com as raças para a produção de carne. “Fomos nós que arrancámos com a Carne dos Açores IGP [Indicação Geográfica Protegida]”, orgulha-se Helga, a irmã do meio. “São animais que têm que ter nascido nos Açores, cruzados de raças puras de carne, têm que ter estado toda a vida em liberdade, não podem viver confinados, têm que mamar pelo menos até aos quatro meses e só comer concentrado em épocas em que não há comida e, mesmo aí, nunca mais de três quilos por dia.”

Depois do trabalho necessário para este reconhecimento, o que preocupa Helga neste momento é que, com o aparecimento da marca Açores identificando os produtos locais, se confundam as duas coisas. “As pessoas pensam que a marca Açores é uma certificação, mas não é. A carne certificada é a IGP”, frisa.

in publico.pt

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