Header Ads

Fintas e (muitas) alcatras: a história de como José fez do Boca Negra um ex-libris da Ilha Terceira.



Em Porto Judeu, mora um leão que fez do peixe a sua vida. É nesta vila da Ilha Terceira, nos Açores, onde há mais de três décadas que José Leal Soares serve as suas famosas alcatras de peixe no restaurante Boca Negra. Dono de uma personalidade desarmante e de um talento nato para o forno, esta é a história de um homem que combateu no Ultramar, viveu nos EUA, até esteve para ser futebolista e cuja única coisa que rivaliza o seu apreço pela cozinha é o amor que nutre pelo Sporting.

Outrora local de abrigo para as embarcações que se quisessem proteger das intempéries de que o Oceano Atlântico é pródigo, atualmente o Porto Judeu tem outras razões para ser visitado que não seja escapar com vida à raiva do mar. No centro da vila, plantado à beira da Estrada Nacional 1-2A, um restaurante atrai gentes de todos os lados, seduzindo não só terceirenses, como até açorianos e outros portugueses de todas as proveniências.



De fora, a fachada anuncia um local despretensioso, mantendo uma matriz mais popular para petiscar e beber umas cervejas. Contudo, é seguindo o olfato que se chega à grande sala de refeições do Boca Negra e se descobre porque é que esta é uma famosa casa de culto ao peixe na ilha Terceira.

No local, são vários os grupos que partem o pão à mesa, em gargalhadas e outras tantas garfadas. Porém, por entre as vozes da sala, há uma que se destaca. Para quem a conhece, o seu timbre é inconfundível, misto de atrevimento e carisma afinados pela experiência de há muitos anos servir. A sua linguagem corre desbragada, como o vinho que se jorra nos copos, e chega a ser um bocadinho picante, com os molhos que fumegam dos pratos. É a de José Leal Soares, dono e cara do Boca Negra.

Quem ali entra, precisa de ter jogo de cintura — é o cliente que se molda a José e não o contrário, com o cozinheiro de 68 anos a tratar os comensais com familiaridade e não se coibindo de condimentar as conversas com um ou dois palavrões. Pela sua boca escapam também “yeahs” e “babys”, sinal de uma vida que foi passada em parte nos Estados Unidos da América a trabalhar.

“Estou aqui desde das sete da manhã até às seis da tarde, sempre a trabalhar peixe", conta, não com cansaço ou mágoa, mas com satisfação. É este o horário que tem regido a sua vida desde que abriu o Boca Negra em 1986, estando a casa prestes a fazer 33 anos (o aniversário é a 3 de agosto).

Ao longo de três décadas, José tem colocado a vila de Porto Judeu no mapa à conta das suas famosas alcatras de peixe. Nas travessas do Boca Negra saem iguarias típicas dos Açores, do do polvo guisado às lapas, passando pelas afamadas cracas, mas é a receita de guisado à moda da ilha Terceira que fez desta casa presença assídua nos guias gastronómicos.

A sua variante de peixe (também há alcatra de carnes como porco ou galinha) usa várias espécies distintas, mas, no caso do Boca Negra, é com garoupa, congro e o dito espécime que dá nome à casa que se faz magia. Levando uma preparação que demora entre 30 a 40 minutos, as carnes de mar são colocadas numa caçoila no forno e cozinham perto de duas horas num molho tão pecaminoso de rico, cuja fórmula está guardada a sete chaves.

"Todos os dias faço alcatras de peixe e já não as provo há mais de 30 anos", diz com algum orgulho, tendo aperfeiçoado a sua fórmula tal maneira que, segundo José, "é certinho, não falha nada, a mão já tá feita para aquilo". A declaração pode parecer cair numa vanglória excessiva ou até num desleixo, mas a verdade é que quem lá vai, com mais ou menos frequência, atesta que a alcatra sai consistentemente igual. Ou seja, sempre boa. A única alteração que fez à receita, frisa, foi criar uma versão do prato sem espinhas, algo que diz ter sido uma invenção sua para poder servir a alcatra “aos filhos dos imigrantes”. No entanto, diz que atualmente “os grandes já comem assim também".

A sua mestria da alcatra surgiu da necessidade, tendo José aprendido a reconhecer os sabores deste prato regional desde cedo num cenário de dificuldades económicas. “Antigamente não se podia comer carne, era só uma vez por semana, mas comia-se peixe todos os dias", lembra o cozinheiro, recordando também que durante a sua juventude era comum as famílias serem numerosas, sendo a alcatra especialmente importante porque “ se comia com pão, para encher a barriga".

A vida de José foi marcada por vários desafios, a começar pela sua chamada para combater durante a Guerra Colonial, onde diz ter sido feito prisioneiro de guerra em Moçambique. Desses tempos, pouco mais adianta, deixando apenas escapar uma nota mordaz: “ainda estou a receber a minha reforma de prisioneiro”, comenta, num sorriso. Retornado no fim do conflito, em 1975, passou apenas três meses nos Açores para se recompor e seguiu para os EUA. O destino foi Sacramento, cidade do estado da Califórnia, e a viagem foi feita com o objetivo já estabelecido de “juntar uns dólares com ideias de voltar”.

Lá, passaria dez anos a trabalhar na agricultura, ocupando-se de tarefas como ordenhar vacas ou a lavoura. “Trabalhava muito, 10, 12 horas por dia. Era tenso”, relata, concedendo, ainda assim, que ao menos tinha a vantagem de trabalhar com um alemão que falava português e de, enfim, estar numa zona que, por proximidade ao México, tinha muita gente que falava espanhol, o que fez da experiência menos difícil pela proximidade linguística.

Uma década de labuta depois, regressaria em definitivo para os Açores em ‘85 com o intuito de ajudar os sogros, ambos diabéticos. “Viemos à sorte”, admite José, que com o dinheiro que tinha acumulado nos EUA, acabaria no ano seguinte por comprar o prédio onde abriu o Boca Negra, dando início a um novo capítulo da sua vida que ainda segue em aberto.

Com o restaurante prestes a fazer 33 anos, José não tem pejo em dizer que tem uma vida “espetacular”. “Eu adoro trabalhar neste ramo, é a minha alegria. Ir para a cozinha, fazer as alcatras e depois vir servir o cliente", refere. E se o segredo do molho não pode ser revelado, o cozinheiro diz que o do negócio é simples. Passa pela velha máxima de “trabalhar com peixe bom”, diz o cozinheiro, para logo a seguir rematar “e tratar bem o cliente também (risos), vá, alguns..."



A boca pode ser negra, mas o coração é verde

Apesar de ser pelo peixe que os bons garfos vêm ao restaurante de José, esta não é apenas uma casa de culto à gastronomia. No Boca Negra, venera-se também uma outra entidade, mas desportiva, de seu nome Sporting Clube de Portugal.

José diz que a sua afiliação ao clube surgiu em pequeno, apesar de apenas ocorrer por intermediação de outro emblema que trajava igual. “O meu irmão jogava no [Sport Clube] Lusitânia, era uma equipa verde. Associámos desde sempre ao Sporting”, conta. A ligação, aliás, não deixa margem para dúvidas, já que o Lusitânia na verdade consta como a Delegação nº 14 do clube de Alvalade. Para José, este facto não é surpreendente, dizendo que o coração de 80% da população da Terceira é como a vegetação que cobre a ilha. “É tudo verde, aqui”, argumenta.

Desde então que o seu amor pelo Sporting cresceu, a ponto do próprio se tornar afamado enquanto adepto verde-e-branco, característica essa que chega mesmo a ser referenciada em guias gastronómicos e críticas ao restaurante. Tanto mais é que, segundo José, a história do Boca Negra entrelaça-se com a do Sporting porque foi no ano [1986] em que o restaurante abriu que os leões bateram o Benfica num famoso jogo que acabou 7-1.

“Gosto mais [do Sporting] do que da minha mulher”, diz na brincadeira. No entanto, sabe que a sua afeição tem um preço e que este às vezes resulta em noites de inquietação. "Às vezes levanto-me às quatro da manhã para fazer alcatras, não consigo dormir quando Sporting perde, então quando é com o Benfica...", admite, lembrando que esse hábito madrugador também o acompanhou nos EUA, quando “ordenhava as vacas depressa para ouvir os relatos às 6 da manhã". “É um clube em que sofre-se muito, não tenham dúvidas", diz num tom agridoce, "mas somos felizes".

Mas a paixão pelo futebol José não a viveu apenas fora dos relvados, tendo, nas suas palavras, “passado ao lado” de uma carreira a jogar como médio esquerdo. Como tantos outros da sua geração, José iniciou-se a jogar “descalço na rua" — tendo depois passado para as botas, "cheias de pregos" —, como uma forma de uma distração da labuta diária. "Jogávamos todos os dias. Saíamos da escola, trabalhávamos nas terras ou a vender peixe e depois íamos para o futebol", recorda.

Das ruas foi jogar para o seu clube local, os Leões de Porto Judeu, onde chegou a ser campeão regional, mas a chamada para Moçambique interrompeu-lhe uma potencial carreira. Contudo, o bichinho manteve-se e já do outro lado do Atlântico manteve a redondinha nos pés, ao jogar num clube de Sacramento. Segundo José, apesar de considerar o nível de jogo nos EUA “muito fraco”, ainda chegou a ser sondado para integrar os San José Earthquakes — não a equipa que neste momento se encontra na primeira divisão do país, a Major League Soccer, mas sim uma versão prévia onde António Simões e um George Best em declínio chegaram a jogar. “Fui convidado para lá jogar, não tinha era tempo", adianta.

Plenamente dedicado a uma vida na restauração de volta aos Açores, José pendurou as botas mas manteve o fervor pelo futebol. Pelas portas do seu restaurante já passaram várias figuras do desporto, lembrando-se de servir personalidades que vão desde Pinto da Costa, atual presidente do Futebol Clube do Porto, até ao ex-dirigente leonino José de Sousa Cintra. O cozinheiro, porém, não descansa enquanto não servir uma pessoa em específico, cidadão que, como ele, tem origem insular e percurso ligado ao Sporting. “Falta me servir o Cristiano Ronaldo”, diz um sorriso de orelha a orelha.

Sem comentários